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"Você abre espaço e eu te dou retaguarda". Me virei e vi os olhos azuis do charmoso cara de cabelos grisalhos que estava atrás de mim. "Se precisar dou até porrada", brincou o desconhecido. "Se der certo, você diz que estamos juntos". Era um momento de definição e eu não tinha muito tempo a perder. Resolvi fechar o pacto com ele. Todos queriam deixar o país e as alternativas não eram das melhores.
A manhã mal tinha começado e meu domingo acumulava emoções fortes. Não tinha dormido nem duas horas. Quando Diego chegou na hora combinada, 7h20, eu ainda fechava a mala. No caminho para o aeroporto ele se distraiu e ultrapassou um farol vermelho olhando para a esquerda – procurava uma saída para a estrada – enquanto os carros vinham da direita. Foi o tempo de eu ver um micro ônibus vindo a toda a velocidade e grudar no braço dele que, mesmo sem saber o que se passava, freou imediatamente. Ainda bem porque meu grito só veio em seguida. Ficamos parados no meio do cruzamento e quase sentimos o vento do ônibus, disparado, poucos metros na nossa frente. O lindo Diego se descontrolou e agradeceu muito por eu ter salvo a vida dele. A nossa, baby.
Ao chegarmos, e depois de despedidas emocionadas, me dei conta do caos reinante no pior espaço que o aeroporto Ezeza poderia ter naquele dia: o guichê da Aerolíneas Argentinas. E eu não podia nem dizer nada, afinal a escolha por voltar no domingo, nesse horário, tinha sido minha. Perguntei sobre meu vôo, das 10 horas, e me disseram que o check in ainda não estava aberto. Fui comer algo antes que desmaiasse de fome. Enquanto tomava um cortado e comia um croissant super amanhecido comecei a entender melhor onde tinha me metido.
Uma senhora passou por mim em uma cadeira de rodas, aos prantos, com uma moça a empurrando de um lado para o outro do saguão. Uma brasileira atravessou os guichês e foi a uma parte fechada chamando os funcionários para trabalharem. Ela estava tentando voltar para o Brasil desde o sábado. Uma outra brasileira disse que ela e a família tinham sido mandados no sábado à noite para um hotel em um distrito de Buenos Aires. E ainda não estavam garantidos no vôo seguinte. Os argentinos no aeroporto se sentiam constrangidos com a situação que havia chegado a companhia aérea que levava mundo afora, no nome, a nacionalidade deles. "Uma vergonha", lamentava uma senhora no café.
Funcionários da AA, ao berros, chamavam passageiros de um vôo para o Chile que deveria ter saído às seis da manhã. Vários vôos, inclusive para o Brasil, apareciam como cancelados nos luminosos. Montevidéu? Nem pensar, greve dos controladores de vôo no Uruguai, diziam. A grossura e a falta de informação reinavam e os ânimos começavam a ficar alterados de todos os lados. "Acho melhor ligar meu iPod", pensei.
Em seguida, descubro onde estava a longa fila do meu vôo e sigo para lá. Antes, para me prevenir, liguei para minha filha pedindo que entrasse no meu email e pegasse todos os dados possíveis da minha reserva. Eu achei que era melhor não contar com o que funciona em tempos normais, ou seja você entrega seu documento e sua reserva é localizada. Não, estávamos em tempos de guerra.
A fila, ou cola como chamam os argentinos, não andava. Uma das meninas que estava atrás de mim viu ser aberto um segundo guichê ao lado de onde estava sendo feito o nosso check in. Foi lá ver o que acontecia e chamou a amiga que tinha ficado na fila master blaster mega hiper, ou seja, a minha e de centenas de pessoas. A colega me deu o toque: aquele também está fazendo check in para esse vôo. Não pensei duas vezes eu fui para lá.
Um pouco antes da minha vez o nada simpático cara desse segundo guichê vai embora. Eu o chamo e ele diz que tinha atendido apenas alguns casos e havia sido deslocado para outro lugar. Como assim? Olho para a mega blaster, impossível voltar para lá. Olho para o lado, família desesperada embarcando dezenas de malas. O cara atrás de mim percebe minha hesitação e resolve se pronunciar. Foi aí que resolvi atender à voz de comando dele e me infiltrar naquela confusão.Comecei a ajudar no embarque daquela família como se fizesse parte daquilo.
Despachadas as malas do casal e dois filhos entrego correndo meus documentos para a funcionária da AA e aviso que estou com ele, o companheiro desconhecido. Ele chega e entrega sua documentação. A menina me dá o bilhete e, vejam só, no meu próprio vôo. Naquela altura do campeonato isso era o mesmo que um bilhete premiado.
Vou para a próxima fila, a do pagamento da taxa para sair do país. E depois para a terceira, a do controle alfandegário. Neil Young cantava cada vez mais alto, Lou Reed já tinha feito todos os esforços, Thom Yorke vinha de vez em quando para me acalmar, Cat Power estava quase me fazendo chorar, Bono já não tinha muito mais o que dizer, restava para o Eddie Vedder segurar o tempo final. Boralá, equipe.
Enquanto estava na fila da PF argentina meu companheiro desconhecido passa por mim. "Você tem mesmo sorte, foi a última do vôo. Eu não consegui e só vou mais tarde". Sério? Ele continua. "Mas em compensação sua mala não estava sendo colocada na esteira. Pedi duas vezes para que a colocassem lá, mas não me atenderam". Sério? Ainda sobrou humor para esse cara, pensei. Resolveu brincar de me aterrorizar.
Duas horas e meia de atraso, chegamos à nossa aeronave. Me deu medo. "Meu Deus, as que fazem Recife-Noronha parecem melhores". Mas não escapei do que poderia ter sido um acidente muito feio e não fui a última a ser colocada nesse vôo para que o avião caísse, não é? Afastei pensamentos negativos.
Dentro do avião o clima era péssimo. As pessoas nervosas procuravam espaço nos pequenos bagageiros para os pacotes e gordas bagagens de mãos –férias na Argentina, com preços "De me dos", lembram ?– e a tripulação tentava ajudar no possível. Entra um casal já na repescagem. Eles tinham o bilhete emitido nas mãos mas a porta do avião foi fechada na cara deles sob o argumento de que o vôo estava lotado. Recontagem feita viram que havia lugares e os chamam para entrar mas deixam outros em igual situação, atônitos, na porta de embarque. A mulher que entrou nessa segunda chamada viu outro lugar livre e teve um ataque histérico:"vocês deixaram aquelas pessoas na porta e quase nos deixaram plantados também com lugar no avião?". Discussão inútil que as aeromoças, sem respostas, procuraram ignorar.
O casal da família que, involuntariamente, foi responsável para que eu estivesse ali tem um ataque de riso. Achei que estavam felizes de embarcar. Não, era o stress transbordando. Um dos assentos que eles tinham, o 3 F, se não me engano, não existia naquela aeronave. Ainda bem que havia um lugar sobrando senão o marido iria junto com o piloto, brinca um passageiro. "Imagina, não quero nem ver a cara do piloto senão volto a pé", ele responde, com o riso nervoso.
O meu cansaço não me deixou pensar muito e dormi quase que a viagem inteira. Afinal, Buenos Aires é uma cidade onde se gasta muita energia. Ainda sonolenta, descubro em Cumbica que meu companheiro desconhecido falava a verdade. A minha mala não veio.
Hoje ela foi entregue em casa, sã e salva. Dei muita risada quando ela chegou inteirinha. Na verdade, o suporte para carregá-la tinha quebrado e ela havia se transformado, literalmente, em uma mala sem alça. Com as minhas encomendas do free shop seria um sacrifício tê-la comigo. Que bom, a Aerolíneas se encarregou de carregá-la por mim até em casa. Menos mal. Que dia......
Detalhe -- a mulher que invadia os escritórios da AA para chamar os funcionários teve sua foto publicada hoje na matéria do Estadão que falava do caos. Aliás, muitos do vôo 1242 deram entrevistas. Não vi nada porque ainda estava lá dentro procurando a minha mala.
LindaPena que houve esse desfecho para mais uma visita à cidade que eu adoro. Buenos Aires continua linda e, ao contrário de muitos brasileiros que a visitam, e até gostam dela, eu também gosto dos portenhos. E cada vez descubro pessoas mais incríveis. Rosa, uma arquiteta argentina, foi um desses presentes que me chegou através de uma amiga comum. Uma pessoa completamente do bem, culta, com uma história interessante de vida e que adora o Brasil a ponto de ter intensivas aulas de português. Super gentil, me cedeu o apartamento que possui no Palermo para que eu ficasse no sábado com minha amiga, depois de nossa estadia no hotel onde estávamos a trabalho ter terminado. Um lugar gostoso, acolhedor, que tem a sua cara e o seu jeito. Viva a doce Rosa e a gracinha da Elo que fez a conexão.
A viagem teve tudo de bom em doses exatas. Degustação de vinho na Winery, pub com boliche (lugar para dançar na capital portenha), jantares deliciosos como o do Uriarte que sempre é bom, Kika, outro boliche cujo som nunca falha, passeios pelo Palermo, um longo café no Malasartes lendo e escutando boa música, o reencontro com algumas pessoas queridas e conhecer outras, a companhia de minha amiga sempre divertida principalmente nas incursões pela night portenha. Buenos Aires continua valendo a visita, independente da Aerolíneas Argentinas.
ParabénsHoje é aniversário do
Redneck e da
Andarilha, dois geminianos (Red já me corrigiu, leoninos, claro. Mas em função do lindo comentário dele, mantenho também os geminianos) que moram no meu coração. Parabéns, amores.
Para eles, coloco a linda Heima do Sigur Rós. Beijos mil.