setembro 28, 2007

Uma bela e despudorada exposição de vísceras

Um dia desses dei uma passada pelo Todo Prosa , do Ricardo Soares, e me deparei com o que ele chamou de uma despudorada exposição pública de vísceras. Uma crônica em forma de poesia, ou uma poesia em forma de crônica, que me emocionou muito. Com todo talento que tem para as palavras falou por ele, por mim, e, provavelmente, por você. Com a autorização dele, reproduzo aqui. Sintam.

Tenho saudades do meu pai e tenho saudades da minha mãe
e saudades de outro tempo onde eu não tinha saudades
tenho saudades do tempo onde eu acordava e via o meu filho
pequeno
e saudades de por a cabeça no sereno quando o tempo escorria
de outro jeito

tenho saudades da vasta amplidão do meu peito
onde cabiam mais amigos e menos desafetos
tenho saudades das crônicas antigas,
das minhas infantis dores de barriga
de um tempo onde eu enxergava meu futuro
sob uma parreira de uva

tenho saudades de um tempo onde eu não me envergonhava
como agora
de dividir essas lembranças com vocês
tenho saudades de velhos noticiários do rádio,
das mãos que seguravam as de meu pai
do vai e vem dos amores da infância
do jeito romântico que eu sonhava com a palavra
da minha inquietação juvenil que no fundo me tocava
fazendo a poesia mesmo ruim ter o vigor da ereção
da propulsão
a quentura do fogo, a força da lava

tenho saudades de não ter vergonha de rimar
de um tempo nem tão antigo
onde eu vi o homem tocar o solo lunar
com o meu pai bem aqui nesse lugar
onde hoje só estão as suas lembranças

tenho saudade do tempo da escrita rude
do fundo pedregoso da represa
de peixes espinhudos que peguei
da jaboticaba madura que provei
do incêndio que , estúpido, não apaguei

também tenho saudades dos sonhos,
daqueles amarelos que na porta da escola eu comia
e me lambuzava
e de outros mais remotos que eu sonhava
tenho saudades do pão quente
do pão presente que então se fazia
e de um futuro que a mim apetecia
onde eu seria tudo de grande
no limite da minha fantasia

o tempo da imagem enfim vingou
o que era doce nem mais doce ficou
e o futuro se pra mim não acabou
futuro, enfim , não se tornou

meu pai foi embora
minha mãe está longe
e eis-me na trincheira aqui sozinho
sem ser martir
sem ser sequer um coitadinho
mas ciente do tamanho que possuo

odeio por fim o pragmatismo
esse rumo tomado, anti-romantismo
onde tecer a palavra é fazer mau jornalismo
onde as regras se soprepõe aos fatos
onde os pratos sujos não são lavados
entre os intervalos das refeições
pois come-se muito

come-se Deus
come-se a boa palavra
come-se a lógica
come-se a ética
a métrica, todos os dedos
come-se o bem, a delicadeza
a mais sensata forma de beleza

come-se a árvore
e deixa-se o cimento do pátio

então, ali no átrio eu grito :
ONDE ESTOU ?PRA ONDE VOU ?

qual o dilema aristotélico que tem
no coração de todo aflito ?

R.S.

Um comentário:

Anônimo disse...

pô... onde esse cara estava escondido que eu não conhecia??? tem livro dele na praça?
legal teu blog
sara